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Código de Defesa e Inclusão do Consumidor Negro: empresas lançam propostas para combater racismo nas relações de consumo

‘As empresas precisam incluir isso no seu regimento para que seja a regra’, afirma a advogada Fayda Belo, especialista em direito antidiscriminatório. Um p...

Código de Defesa e Inclusão do Consumidor Negro: empresas lançam propostas para combater racismo nas relações de consumo
Código de Defesa e Inclusão do Consumidor Negro: empresas lançam propostas para combater racismo nas relações de consumo (Foto: Reprodução)

‘As empresas precisam incluir isso no seu regimento para que seja a regra’, afirma a advogada Fayda Belo, especialista em direito antidiscriminatório. Um professor que trabalha com Letramento Racial aponta que a medida pedagógica é mais benéfica que a punitiva. Empresas lançam propostas para combater racismo nas relações de consumo Empresas se uniram e lançaram o Código de Defesa e Inclusão do Consumidor Negro com 10 propostas para revisão e alinhamento nas formas de atendimento a pessoas negras em lojas. As medidas, sem validade jurídica, foram elaboradas pela L’Oréal Luxo, uma das divisões de negócio do Grupo L’Oréal no Brasil, e o MOVER (Movimento pela Equidade Racial), com a parceria da Black Sisters in Law. Dentre as normas (veja todas as 10 propostas no fim da reportagem), destacam-se: Capacitação antirracista: Estabelece a obrigatoriedade de treinamento para funcionários e colaboradores em letramento racial, visando erradicar vieses e práticas racistas, verbais ou não verbais; Prontidão no atendimento: Propõe que consumidores negros sejam atendidos prontamente, reconhecendo a necessidade de reparar a lógica excludente que historicamente os ignora; Garantia de livre acesso e circulação: Veda qualquer barreira, física ou simbólica, que restrinja o acesso e a livre circulação de consumidores negros nos estabelecimentos, assegurando igualdade de condições; Regras para revistas: Estabelece protocolos claros para a abordagem e revista de consumidores negros, que só devem ocorrer mediante provas inequívocas, visando coibir a prática discriminatória baseadas em estereótipos raciais. Código de Defesa e Inclusão do Consumidor Negro Divulgação/Muuvies Há, ainda, regras específicas para o mercado de higiene e beleza, como: Disponibilidade de produtos para pessoas negras: Estabelece a obrigatoriedade de estoque adequado e suficiente de produtos que atendam às características específicas de consumidores negros, como tonalidades de pele e tipos de cabelo. A iniciativa nasceu após a pesquisa “Racismo no Varejo de Beleza de Luxo”, encomendada pela L’oreal em 2024, que revelou 21 práticas racistas na jornada de compra do consumidor negro. “Como líderes da indústria de beleza no mundo, queremos inspirar através do exemplo para que o Código seja adotado como protocolo interno por outras companhias, assim como estamos fazendo, em um ato de autorregulamentação antirracista. Este Código é uma ferramenta em legítima defesa de uma população historicamente excluída e já nasce com o objetivo de que, em algum momento, não seja mais necessário”, afirma Bianca Ferreira, Head de Comunicação e Diversidade, Equidade e Inclusão da L’Oréal Luxo. Embora sem validade legal, o Código de Defesa e Inclusão do Consumidor Negro possui um valor moral, segundo organizadores do projeto. "Para construirmos um futuro em que a equidade racial é um ponto de partida é necessário um esforço conjunto para erradicar preconceitos e práticas discriminatórias. O Código de Defesa e Inclusão do Consumidor Negro traz caminhos concretos e é um convite para uma mudança profunda, onde a experiência de compra de consumidores negros seja livre de preconceitos e marcada pela igualdade e pelo respeito”, destaca Natália Paiva, diretora executiva do MOVER. Código de Defesa e Inclusão do Consumidor Negro Divulgação/Muuvies Em entrevista ao g1, a advogada especialista em Direito Antidiscriminatório Fayda Belo disse que as empresas precisam reconhecer o poder aquisitivo da população negra. “Eu tenho um mercado onde pessoas negras gastam R$ 1,7 trilhões por ano. Ou seja, a população preta tem o poder de compra, mas não tem o direito digno ao acesso a essa compra. É como se em 2025 ainda tivesse no imaginário a ideia de que as pessoas negras só podem ter acesso a produtos baratos”, afirma a advogada, que também é especialista em crimes de gênero e feminicídios. “Esse código vem em primeiro lugar para dizer não só para o Brasil, mas para as empresas, que a gente não pode ignorar mais que o mercado de luxo é extremamente racista. Se a gente não dá nome, a gente não acha remédio, não tem como eu achar a cura para algo que eu não sei o que é”, complementa. 📸Clique aqui e siga o perfil do RJ1 no Instagram! ✅Siga o canal do g1 Rio no WhatsApp e receba as notícias do Grande Rio direto no seu celular. A fundadora da Black Sisters in Law aponta que o Código do Consumidor não é capaz de abarcar todas as possíveis manifestações do racismo. “As propostas de normas que redigimos para autorregulamentação das empresas no Código de Defesa e Inclusão do Consumidor Negro tiveram como base recortes fundamentais da Constituição Federal de 1988 e do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), ampliando sua interpretação para garantir uma proteção mais efetiva à população negra”, afirma Dione Assis. “Poder revisitar o CDC com esse olhar afrocentrado, ao lado de outras mulheres negras que compartilham da mesma luta, foi algo extremamente significativo. É a chance de darmos voz às nossas experiências, inspirar mudanças e contribuir para um mercado onde todas as pessoas se sintam representadas e valorizadas", complementa a jurista. Código de Defesa e Inclusão do Consumidor Negro Divulgação/Muuvies Lei Afonso Arinos A Lei Afonso Arinos foi a primeira norma contra o racismo no Brasil. Mesmo a abolição da escravidão tendo sido em 1888, a primeira lei para combater a discriminação foi apenas em 1951: 63 anos depois. Proposta pelo deputado federal Afonso Arinos, foi aprovada em 3 de julho de 1951 e “tornava contravenção penal a discriminação racial, a discriminação por raça ou cor”. A advogada Fayda Belo aponta como a motivação para a lei nasceu: “Foi a primeira vez que o Brasil reconhece que é racista e adivinha o motivo? Porque pessoas negras iam às lojas e pessoas diziam: ‘Não vendo aqui para pretos’. Iam almoçar e [ouviam] ‘Não pode ir’. Tentavam reservar hotel e não tinham o direito mesmo tendo grana para pagar”. “Veja que isso foi em 1951 e estamos em 2025. Entende a relevância que é você ter uma norma pública que dita assim: ‘é histórico que no Brasil se nega o direito à população negra do acesso ao consumo mesmo tendo dinheiro para pagar”, complementa Belo. Para a advogada, é necessário que as empresas tenham áreas de inclusão e diversidade e incluam o Código no seu regimento interno, para que se torne regra. ‘Antes a medida pedagógica do que a punitiva’, diz professor O g1 ouviu vítimas de casos de racismo em estabelecimentos do Rio que viram como positivo o lançamento do código. O professor Moisés Machado, de 30 anos, que denunciou no ano passado uma vitrine que colocava um macaco junto a uma boneca negra na Zona Sul do Rio, aponta que o caráter pedagógico é mais benéfico e educativo do que ir pelo caminho da punição. “A iniciativa é interessante, principalmente, por possuir um caráter pedagógico ao fim proposto. Antes a medida pedagógica que a punitiva. Afirmo que a capacitação de funcionários pode minorar práticas racistas nos postos de trabalho”, afirma Moisés, que trabalha com Letramento Racial nas empresas. “Se o racismo estrutural foi incorporado na nossa sociedade, sobretudo, por práticas pedagógicas voltadas para o mal, é com uma pedagogia Antirracista é que iremos obter sucesso nesse combate por um corpo social mais equalitário”, complementa. Código de Defesa e Inclusão do Consumidor Negro Divulgação/Muuvies Um outro jovem, que foi seguido por um segurança em um shopping de alto padrão da Zona Sul, questiona o critério utilizado para discriminar pessoas negras nesses ambientes. “O que define uma pessoa suspeita? O que é um comportamento suspeito? Qual é o caminho que a identificação de uma pessoa suspeita vai levar? Ele vai ser seguido, levado para uma sala privada, abordado na frente de todo mundo?”, questiona. “Penso muito na transparência desses estabelecimentos quanto à segurança deles. Que tal comportamento é tão perigoso assim e quais são os passos que eles costumam fazer para solucionar a segurança? O treinamento é necessário, mas a transparência também”, conclui. Yanca Ellen, de 24 anos, que foi acusada de roubo em uma loja da Zona Norte do Rio, aprova a iniciativa e defende a incorporação em todas as lojas. “Para outras pessoas não passarem pelo que eu passei diante da loja e até para outras pessoas pretas irem a shoppings e se sentirem confortáveis. Eu achei incrível. Acho que toda loja deveria dar um treinamento pros seus funcionários sobre como abordar e tratar uma pessoa preta. Isso já deveria estar funcionando há muito tempo, eu não fui a primeira nem vou ser a última”, afirma. A mãe de uma adolescente que foi acusada de furto junto a outra colega em um shopping da Ilha do Governador afirma que é difícil se livrar totalmente da raiz racista brasileira. “É um começo para a gente tentar diminuir o racismo, porque eu acho que acabar o racismo, a gente não vai conseguir. Nós podemos conseguir diminuir o racismo, mostrar que a cor da pele não interfere, mostrar que a carne preta não é tão não valiosa assim, que a carne preta vale, porque muita gente acha que a carne preta não vale nada, mas a carne preta vale muito. Então é uma iniciativa boa”, afirma. Veja as 10 propostas do Código Art. 1º É dever do estabelecimento capacitar seus funcionários e colaboradores por meio de letramentos raciais e treinamentos, com mínimo de 6 horas anuais, conduzidos por consultorias externas especializadas, visando erradicar vieses e práticas racistas (verbais ou não verbais). Art. 2º É dever do estabelecimento agir com presteza no atendimento ao consumidor negro, assegurando-lhe o tratamento digno e respeitoso para combater a invisibilidade social. Parágrafo único – Os vendedores e atendentes deverão ser orientados a dispor pronto atendimento ao consumidor negro que entre no estabelecimento, salvo se já estiverem prestando atendimento a outro cliente. Neste caso, o consumidor negro deverá ser atendido tão logo um vendedor ou atendente esteja disponível. Código de Defesa e Inclusão do Consumidor Negro Divulgação/Muuvies Art. 3º É vedado aos estabelecimentos impor quaisquer barreiras, físicas ou simbólicas, que restrinjam o acesso do consumidor negro aos produtos expostos e disponíveis para os clientes, bem como limitar sua livre circulação e permanência no ambiente comercial, assegurando igualdade de condições de acesso, sem imposição de tempo determinado. Parágrafo único – É dever dos atendentes expressarem, de forma verbal e clara, que os consumidores negros podem circular pelo estabelecimento e manusear os produtos expostos, assegurando, de maneira ativa, o pleno exercício de sua liberdade e segurança no ambiente. Art. 4º É dever do estabelecimento agir com cautela ao abordar o consumidor negro, devendo a abordagem ocorrer somente mediante a existência de provas inequívocas que deverão ser apresentadas ao consumidor negro antes de qualquer revista e em estrita observância aos protocolos estabelecidos: I – Quando o alarme de segurança for disparado. II – Quando houver uma testemunha ocular esta deverá ser, necessariamente, um preposto da empresa. III – Quando houver registro audiovisual do delito por meio de câmeras de segurança. IV – Assegurar o acesso à disponibilização das gravações. Parágrafo único – A revista poderá ser realizada se houver evidência do furto com o cumprimento dos protocolos acima, em caso de suspeita infundada, caberá ao consumidor negro se opor a tal ilicitude e imediatamente acionar a segurança pública para que a revista seja realizada por seus agentes. Art. 5º É obrigação do estabelecimento adotar medidas inclusivas que promovam a contratação de funcionários negros, a fim de alcançar representatividade negra similar à existente na população local. Parágrafo único – Dispor de atendente negro em todos os turnos da jornada de trabalho. Art. 6º O atendimento ao consumidor negro deverá ser realizado com respeito e dignidade, sendo vedadas quaisquer formas de tratamento discriminatório, incluindo comunicações estereotipadas ou ofensivas. § 1º É expressamente proibido o uso de alcunhas ou qualquer outra forma de tratamento pejorativo no atendimento ao consumidor negro. § 2º É vedado qualquer contato físico com o consumidor negro, salvo nos casos em que houver solicitação ou consentimento expresso. Art. 7º Todas as informações referentes a preços e condições de pagamento devem ser disponibilizadas de forma clara, acessível e adequada, em conformidade com a legislação vigente. É expressamente vedado ao atendente do estabelecimento informar verbalmente o preço de um produto sem solicitação prévia. Parágrafo único – As informações relativas às condições de pagamento e parcelamento, bem como descontos, poderão ser prestadas no curso ou ao término do atendimento, sendo vedada sua apresentação durante a abordagem inicial ao consumidor. Art. 8º É obrigação dos estabelecimentos garantir representatividade na comunicação visual (publicidade) presente em seus pontos de venda, com conteúdo de pessoas negras sem que perpetue estereótipos exóticos ou racistas Art. 9º Os estabelecimentos que comercializam itens de beleza têm a obrigação de manter estoque adequado e suficiente de produtos, compatível com a extensão do local e o fluxo de consumidores, assegurando a disponibilidade dos produtos que atendam às características específicas de consumidores negros, incluindo diferentes tonalidades de pele e tipos de cabelo. Parágrafo único – Na eventualidade de ausência de estoque, é vedado oferecer produtos substitutivos e/ou em quantidade maior do que o consumidor compraria, e que não atendam plenamente às suas características específicas, induzindo-o ao erro. Art. 10º Os estabelecimentos que comercializam produtos ou serviços de beleza devem adotar medidas inclusivas, garantindo a capacitação técnica de todos os seus funcionários e colaboradores, com formação adequada e especialização para o atendimento do consumidor negro, considerando suas especificidades.

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